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Poesias de Dom Pedro II/11

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Poesias de Dom Pedro II (1889)
Episodio do Conde Ugolino by Dante Alighieri
377274Poesias de Dom Pedro II — Episodio do Conde UgolinoDante Alighieri
[ 11 ]

VERSŌES.


 

EPISODIO DO CONDE UGOLINO.
( Trad. da Divina Comedia de Dante. )

 

A bocca levantou do feroz pasto
O peccador,limpando-a no cabello
Da cabeça, que atraz já tinha gasto.
E começou: tu queres revivêl-o
O desespero que minha alma sente,
Só de pensal-o; inda antes de dizêl-o.
Porem, se meu discurso, qual semente,
Brota infamia ao traidor a quem devóro,
Fallar, chorar verás tu junctamente.
Quem tu sejas nāo sei; mas Florentino,
Si te ouço, em te chamar nāo me demoro.
Saberás que fui eu o Conde Ugolino,
E Rogerio arcebispo este malvado;
Ouve, porque sobre elle assim m’inclino;
Dizer que por intento seu damnado
N’elle fiando-me, elle me prendeu
E depois me matou, é excusado:
Mas certamente o que nāo tens ouvido,
E como foi cruel a minha morte;
Ouve e sabe se fui d’elle offendido.

[ 12 ]
 

N՚um vāo estreito, dentro d՚esse forte
Que a chamar-se da fome de mim veio,
E onde a outrem aguarda triste sorte,
Assaz pela setteira o disco cheio
Vira eu da lua, quando um pesadelo
Rasgou-me do futuro o véu ao meio:
Qual dono e amo á caça, posso crêl-o,
D՚um lobo e lobosinhos na montanha
Que ao de Pisa o de Lucca impede vèl-o,
Magras cadellas em constante sanha,
Os Lanfrancos, Sismondis collocando
E Gualandos na frente da companha;
Mas na curta carreira já cansando
Pae e filhos, agudos dentes vāo
Seus membros com furor atassalhando.
Antes d՚aurora me acordei e entāo
Ouvi meus filhos, junto do meu lado
Chorar dormindo e me pedirem pāo.
És bem cruel, se já nāo estás magoado
Do que meu coraçāo me adivinhava,
E, se nāo choras, de que tens chorado?
Accordados, a hora já chegava,
Que soiāo trazer-nos a comida,
E cada um com o sonho vacillava.
Eis que ouvi que fechavāo a sahida
Da horrivel torre; logo o rosto olhei
De meus filhos sem dar signal de vida.

[ 13 ]
 

Nāo chorava, que em pedra me tornei,
Elles sim; o Anselminho, que é tāo meu,
Disse: Que tens? O que olhas, pae, nāo sei.
E nāo chorei, e nāo respondi eu
Por todo o dia e toda a noite inteira,
Té que no mundo novo sol se ergueu.
Ao entrar pouca luz pela setteira
No doloroso carcer, descobri
Minha cara nas quatro verdadeira;
De desespero ambas as māos mordi,
E crendo que o fizera por vontade
De comer, levantarāo-se d՚ali,
E disserāo: Oh Pae, maior piedade
É comeres de nós; tu nos vestiste
Das pobres carnes, tira-as sem saudade.
Soceguei por nāo ver cada um mais triste.
Este dia, mais outro passa-se calado.
Ah, crua terra, porque nāo te abriste?
Quando por fim o quarto é já chegado,
Gaddo a meus pés atira-se ao comprido
E diz: Nāo me soccorres, pae amado?
Ahi morreu, e qual me vês cahido,
Os trez vi eu cahir de um em um,
Do quinto ao sexto dia; já perdido,
Cego me puz a apalpar cada um.
Trez dias os chamei, mortos estando.
Mas pode mais que a dor emfim o jejum.

[ 14 ]
 

Assim fallou, e, os olhos revirando,
Ferra de novo o craneo com os dentes
Fortes de um cāo a um osso esmigalhando.
Ah Pisa, vituperio vil das gentes
Da bella terra, aonde o si resôa,
Se os visinhos nāo punem-te indolentes,
Vem Gorgona, Capraia, em hora boa,
Formar um dique do Arno sobre a foz,
Tal que elle afogue a ultima pessôa.
Se do povo a Ugolino o accusa a voz,
Pelos castellos teus atraiçoados,
Seus filhos nāo merecem morte atroz.
Erāo por tenra idade innocentados,
Oh nova Thebas, Hugo e o Brigata
E os outros dous no canto nomeados.

 

  This is a translation and has a separate copyright status from the original text. The license for the translation applies to this edition only.
Original:
This work was published before January 1, 1930, and is in the public domain worldwide because the author died at least 100 years ago.
Translation:
This work was published before January 1, 1930, and is in the public domain worldwide because the author died at least 100 years ago.