Poesias de Dom Pedro II/61
O CANTO DO SICILIANO.
EL REI ROBERTO DA SICILIA.
Poesia de Longfellow.
Roberto de Sicilia, irmāo do Papa Urbano,
De Valmundo tambem, Imperador Germano,
De muitos cavalleiros nobres rodeado,
Vesp’ras de Sāo Joāo, ufano se assentava,
Emquanto o côro o magnificat psalmeava.
Ouvindo repetir,a modo de bordāo,
Deposuit potentes de sede e o deāo,
Sem pausa, et exaltavit humiles dizer,
Começa a real cabeça apenas a erguer,
E diz a um douto padre junto do seu lado:
Que palavras sāo estas? Bom significado
Logo o padre lhes dá; responde: « Os poderosos
Depōe Elle da Sede e exalta os humildosos.
Entāo El Rei Roberto altivo resmonêa:
« Palavras de motim, que, em bem, só gargantêa
« O padre, e na latina lingua não s’entendem,
« Que já padres e povo, ha inuito, comprehendem,
« Que nenhum poder basta a m’expulsar do throno. »
Recosta-se, buceja, e cae em grave somno,
Embalado do canto surdo e monotono.
Quando o rei acordou era já noite escura:
A igreja vasia, e luz nenhuma dura,
Excepto um lampadario aqui , ali mortiço,
Bruxoleando no altar, dos Santos em serviço.
Salta do sitial, pasmado olha p’ra tudo;
Nem viva alma; só vê espaço vasto e mudo.
Tacteando busca as portas; todas estāo fechadas.
Grita em voz alta; escuta, dá pancadas;
Solta ameaças horriveis e lamentaçōes,
Contra homeus e santos mil imprecaçōes;
E vāo reboando os sons por tectos e muralhas
Como padres a rir envoltos nas mortalhas.
Gritos, pancadas ouve, emfim, o Sachristāo;
Julga que sāo ladrōes na casa da oraçāo;
Entra com a lanterna, e inquire: « Quem ’stá hi ? »
De raiva e furia arfando, El-Rei lhe diz : « Abri;
Sou El-Rei! Tens receio ? » O timido Sachrista
Pragas resmoneando, logo que o avista,
Exclama; « É um vagabundo bebado, ou peior. »
Volta dá ao chavāo, abre o portal maior.
Entāo roça por elle alguem, n’uma passada - ,
Feroz e meio nú; sem chapeo, sem mais nada,
Que nem mesmo se volta, ou olha, nem lhe falla;
Mas lança-se oude a noite escura mais se cala,
E dos olhos qual spectro esvae-se sobr’humano,
Roberto de Sicilia, irmāo do Papa Urbano,
De Valmundo tambem, Imperador Germano,
Despojado das galas, trajes sumptuosos;
Bufando, sem chapeo, cara e membros cenosos,
Do ultraje e da affronta cheio o coraçāo.
Vae n’um pulo do paço ás portas qual trovāo,
Rompe por cortesāos; derriba em seus furores
A direita, á esquerda, pagens e senhores;
Cavalga a escadaria extensa e retumbante,
Livida a face, á luz das tochas deslumbrante.
Salas passa, mais salas; rapido, arquejando,
Ouvindo vozes, gritos; mas nāo attentando,
Até chegar, emfim, às salas dos banquetes
Que resplende de luz, recende de pivêtes.
Lá se assenta outro rei, debaixo do docel,
Trazendo seus vestidos, c’rôa e seu annel,
Qual Roberto em feiçōes, na forma, na ’statura,
Mas resumbrando luz d’empyrea creatura.
Era um Anjo de Deus, entāo n’esse local,
Que enchia todo o ar de brilho divinal;
E embora entre o disfarce o bello transpareça,
Ninguem ha que o occulto Anjo reconheça,
Mudo um instante, immovel, abysmado;
O rei sem throno encara o celico enviado,
Que fita os seus olhares d’ira, e d’anciedade
Co’a vista a mais divina e cheia de piedade.
E diz-lhe entāo: « Quem és? Por que razāo tu vens?»
Roberto respondeu, soberbo em seus desden-:
« Sou El-Rei; venho aqui buscar o que é só meu,
« D’este impostor sentado em throno nunca seu. »
E subito, ao ouvir palavras tāo ousadas
Os convivas raivosos puxam das espadas;
Mas falla o Anjo, e a testa é sempre lisa e igual:
« Nāo és El-Rei; nāo és; mas sim d’El-Rei jogral.
« De guisos andarás e capa de romeiro,
« Um bugio trazendo, como conselheiro.
« Ás ordens dos creados, que amos teus serāo,
« Servirás a meus pagens, mesmo no salāo! »
Surdos a ameaças, rogos, gritaria,
Atirāo a Roberto pela escadaria.
Chusma de galhofentos pagens corre adiante,
E quando abrem a porta em dous umbraes rodante
Desfallece; pois ouve entrado de terror
O rir da soldadesca immenso, atroador.
E restrugindo vae n’abobada do paço,
Por mofa esta ovaçāo: « Viva El-Rei longo espaço! »
Na seguinte manhā, antes do primo alvôr,
Acorda e diz comsigo: « Estou um sonhador! »
Porem a palha range, se a cabeça vira;
Perto do leito a capa e os guisos descobrira;
Muros s’erguem á roda nús e descorados,
Comem corceis ao pé ás baias amarrados,
E mettido nun canto, aspecto repugnante,
Faz tregeitos e guincha o môno saltitante.
Nāo foi sonho; que o mundo d’elle tanto amado
Tornou-se cinza e pó por elle o ter tocado.
Dias vem, dias vāo, e volta em novo turno
Á Sicilia o reinado antigo de Saturno.
Sob as vistas do Anjo todas paternaes
Folga a ilha feliz em vinhas, cerenes;
E no fundo do seio ardente das montanhas
Encelado, o Titāo, quieto nāo se assanha.
Emtanto El-Rei Roberto rende-se a seu fado
Sempre triste, em silencio e tāo desconsolado,
Vestindo os matizados trajes de truāo;
Desgarrado o olhar; vista sem direcçāo;
Um cercilho, qual frade, tendo bem completo,
De motejos a nobres e pagens objecto;
Sendo só seu amigo o môno, e alimento
Só restos, conservava indomito ardimento
Se o Anjo o encontrava e, seu caminho andando,
Dizia meio serio e já meio brincando,
Tôrvo o rosto; mas terno, até elle apalpar
Se em forro de velludo o aço pode achar:
« És El-Rei? » A paixāo que o peito assoberbava
Em violentas torrentes logo transbordava,
Erguia nobre a fronte, e nāo como sandeu
Jogava esta resposta; « El-Rei, El-Rei, sou eu! »
Lá vāo quasi trez annos, e eis que sāo chegados
De nome e grão conceito varios enviados,
Que Valmundo mandou, Imperador Germano,
P’ra Roberto avisar que o santo Padre Urbano
Por cartas os citava a irem, sem detenças,
Passar com elle em Roma as santas Endoenças.
Taes visitas mui ledo o Anjo recebeu.
Vestidos de brocado, anneis, joias lhe deu
Do genero mais raro e mantos de velludo
Pelo forro d’arminhos ricos sobretudo.
E entāo com elles parte, atravessando o mar,
Até da Italia amena ás praias apportar,
Amavel regiāo, mais bella n’esse instante,
Só por ahi passar o sequito brilhante,
Com plumas, trajes, mantas, joias a tinirem
Nos arreios, e esporas d’ouro a reluzirem.
Mas eis que entre lacaios, alvo de galhofa,
Em malhado corcel gestos que excitāo mofa,
De rabos de raposa o manto fluctuando,
Grave e solenne o môno atraz d’elle montando,
Cavalga El-Rei Roberto, e immensa gargalhada
O segue sem cessar, por quanta villa andada.
Na praça de Sāo Pedro o Papa aos convidados
Con pompa recebeu, clarins embandeirados .
Logo lhes dá a bençāo e avido os abraça ,
Respirando apostolica e divina graça.
Emquanto Urbano acolhe o Anjo entre oraçōes,
Mil festas e espontaneas congratulaçōes,
Roberto, o histriāo, remette pela gente
Té a elles chegar, e grita em voz fremente:
«Eu sou El-Rei! Olhue e em mim reconhecei
« Roberto, vosso irmāo, e da Sicilia Rei!
« Este, que a vossos olhos rouba-me as feiçōes,
« É misero impostor, só rei nas illusōes.
« Pois nāo me conheceis? Pois nada em vós latente
« Responderá por mim, que sou vosso parente? »
Cala o Papa, e com ares d’homem qu’inda hesita,
Do Anjo o sempre sereno rosto ein balde fita;
Sorri-se o Imperador, e diz: « É bem achado »;
E o pobre do truāo, juguête da desgraça,
Lá vae aos empurrōes da bruta populaça.
Passa a Semana Santa em festas veneraveis.
E a Paschoa doura as nuveus de tons admiraveis.
Co’a presença do Anjo pura e radiante.
Já tudo antes da aurora torna-se brilhante,
E entāo novo fervôr os corações incita
Que sentem que deveras Christo resuscita
Até mesmo o jogral das palhas do seu leito,
Com olhar espantado, observa o raro effeito,
Sente em si um poder ignoto até entāo
E, arrojando-se humilde sobre o duro chāo,
Ouve o leve roçar das vestes do Senhor,
Que varre o ar serano e sobe ao Creador.
Já termina a visita, e volta incontinente
Valmundo para as margens do Istro, e egualmente
Viaja p’ra casa o Anjo, e a côrte magestosa,
Que o segue pela Italia a torna mais garbosa,
Cidades percorrendo, villas triumphante
Até a de Salerno, e o mar d’ahi em diante.
Já dentro de Palermo estando descansado,
E do grande salāo no throno reclinado,
Ao ouvir do convento o sino das Trindades,
Qual entre céos e mundo troca de saudades,
Acêna a El-Rei Roberto para se chegar,
E a todos mais d’um gesto fal-os retirar;
Logo que ficāo sós, o Anjo entāo lhe diz:
« És El-Rei? » E Roberto curva-lhe a cerviz,
E, cruzadas as māos no peito penitente,
« Tu o sabes melhor », responde brandamente,
« Minhas culpas enormes só n’algum convento,
« Schola de contricçāo, as lava o arrependimento.
« Deixa-me pois do Céo trilhar a aspera verêda
« Descalço, até que um padre a graça me concêda. »
Sorri-se o Aujo. Da face bella e radiante
Sae luz santa, que o paço torna fulgurante,
E das janellas sôa em alto diapasāo
Dos monges, na capella, ograve cantochāo,
Que da rua o tumulto excede e o ruido:
« Os potentes depōe do Solio o mais subido,
« E do infimo pó exalça-os no outro dia.»
E n’este mesmo psalmo alheia melodia,
Qual de corda singela unisona a vibrar,
« Sou Anjo e tu El-Rei », ouvia-se cantar.
El-Rei Roberto em pé junto do throno estava;
Ergue os olhos e vê que só ali se achava,
Mas ornado de galas, como antigamente,
Manto de arminho, e trajes d’ouro reluzente.
Vindo, a côrte o encontra em esplendido salāo,
De joelhos, absorto em tacita oraçāo.
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